Política

Lógica: juiz Cícero Martins questiona judicialização das decisões pandêmicas, ressalta vacina e chama a atenção para obrigações do Executivo. Sentença

28 JAN 2022

O Ministério Público do RN foi à 4ª Vara da Fazenda Pública de Natal pedir a suspensão de eventos em Natal, liberados pelo decreto da Prefeitura de Natal, mas proibidos pelo decreto estadual.


Decisão: o juiz titular, Cícero Martins, negou o pedido.


Em uma sentença muito sensível, lógica e bem fundamentada, ele apresenta levantamentos e faz questionamentos.


Remete ao cenário do início da pandemia. E discorre até o momento atual (confira decisão completa abaixo).


Chama a atenção que se delegou ao Judiciário, por vezes, desde o início da pandemia, a “adoção de soluções que não teriam sido propostas pelos governos dos entes federados, ou que teriam sido erradamente adotadas para combater medidas por eles adotadas”. 


Atenta que anteriormente não existiam ainda as vacinas. E agora, “mesmo com a vacinação, mesmo com a construção de um consenso federativo acerca do combate à pandemia, continua o Judiciário sendo chamado a intervir nessa seara, como é a situação ora posta na pretensão deduzida pelos autores”.


Destaca:


- Como se sabe, desde o início da circulação do vírus causador da pandemia, governos, pesquisadores, médicos, vem se mobilizando a fim de dar uma resposta rápida contra aquela que já entrou para a história como uma das piores pandemias. E felizmente já encontraram algumas respostas, dentre elas, destacadamente, a vacina.


Discorre incisivo:


- O que chama a atenção deste julgador é que, nesse ambiente da pandemia onde em outras partes do mundo se comunicam governos, cientistas, pesquisadores, médicos e tantos outros profissionais, para agir e tomam decisões sobre suas ações, no Brasil é o Judiciário que vem sendo chamado, desde o início da pandemia, e cada vez mais, para agir como se governo fosse. O Brasil é, certamente, o único país do planeta onde as ações governamentais relativas à pandemia estão sendo quase que sistematicamente questionadas na via judicial. É como se o Judiciário estivesse sendo o próprio Governo. Decididamente, o Judiciário não pode ter essa primazia institucional, pois isso afastaria qualquer lógica política e lógica jurídica que estão na alma e no corpo de nossa Carta Política, nosso pacto social.


Pois bem


Todo o contexto expresso pelo magistrado é de tamanha magnitude, que merece a leitura em sua íntegra (abaixo).


Em tempo


O juiz habilitou a Fecomércio RN como Amicus Curiae na Ação Civil Pública, “considerando a relevância da admissão deste terceiro como fonte de subsídios instrutórios à solução da causa, que se reveste de relevância social, e não enxergando qualquer prejuízo às partes com a sua participação os autos”. 


Em tempo 2


No ano passado, Cícero Martins reconsiderou a decisão que obrigava a Prefeitura de Natal a retirar a ivermectina do protocolo médico contra a covid-19. A reformulação, através de liminar, ocorreu após o pedido do Município ao apontar contradições na Ação Civil Pública.


De acordo com a liminar, era incoerente permitir a disponibilização do remédio pelo Município em respeito à autonomia médica e, por outro lado, proibir a sua inclusão no protocolo, o que resulta numa forma de obscurecer o dever de transparência do Poder Público. “Revendo o que foi posto por este Juízo na decisão, convenço-me que, efetivamente, há nela um equívoco que pode suscitar dúvidas, podendo  complicar o seu entendimento. Existe, sim, uma contradição, que pode e deve ser agora corrigida”, ressaltou o magistrado em sua decisão.


E reforçou que a prefeitura apresentasse estudos que indicassem a eficácia da ivermectina, junto à recomendação do Conselho Regional de Medicina do RN, apontando o uso do fármaco como mais uma das armas de combate à covid. 


Chamou atenção para a inexistência do impedimento de prescrição pelos médicos, o uso pelos pacientes, e a dispensação e disponibilização do remédio ivermectina pelo Município de Natal para tratar a doença do coronavírus.


Íntegra da sentença:


DECISÃO


OMinistério Público do Estado do Rio Grande do Norte e aDefensoria Pública do Rio Grande do Norte promovem ação civil pública em face do Estado do Rio Grande do Norte, aduzindo, em síntese, que no atual quadro de pandemia de COVID-19, com o avanço da variante Ômicron, no início de janeiro deste ano, houve a explosão do número de casos de contaminação no Estado, ocasionando o aumento da taxa de ocupação dos leitos de UTI COVID para 74,17% (setenta e quatro por cento).


Afirmam os requerentes que medidas mais efetivas de contenção do avanço da doença devem ser tomadas pelo Estado do RN, com a aplicação de todas as diretrizes da Recomendação no 33 do Comitê de Especialistas da SESAP para o enfrentamento da Pandemia, uma vez que poderá haver agravamento da situação epidemiológica. Asseveram que ato normativo do Governo do Estado do RN, preconizado no Decreto 31.265/2022, não seguiu tal recomendação, possibilitando a realização de eventos abertos ou fechados, públicos ou privados, embora com imposição da exigência do passaporte sanitário, ou seja, a comprovação da vacinação contra a Covid-19, havendo, assim, a necessidade de intervenção judicial para obrigar o Estado do RN a editar medidas prevendo a proibição de promoção de grandes eventos em todo território estadual, até que os novos casos de Covid-19 voltem aos patamares dos meses de novembro e dezembro do ano passado.


Diante disso, buscam, em sede de tutela de urgência, o cancelamento de autorizações concedidas através do citado Decreto do Poder Executivo Estadual às promotoras de eventos para realização de shows e festas em locais abertos ou fechados com grande público (com capacidade acima de 100 pessoas, pelo que se deflui da inicial)em todo o território do Rio Grande do Norte. E no mérito, pedem a confirmação dos efeitos da tutela de urgência, invocando comofundamento o art. 16 do Decreto Estadual no 31.265/2022, que possibilita ao ente federado rever, a qualquer tempo, as medidas estabelecidas, em face do cenário epidemiológico.


Ao deduzirem pretensão, transcrevem a publicação do texto do referido Decreto Estadual e das Recomendações dos Comitês Médicos de enfrentamento à pandemia, além dos dados oficiais de contaminação e de ocupação das UTI’s COVID-19.

   

Em despacho inicial, este Juízo determinou a intimação do requerido para apresentação de justificação prévia, o que foi realizado no prazo judicial assinalado, tendo o Estado do RN alegado o não preenchimento dos requisitos ensejadores da concessão da tutela antecipatória de urgência, posto que viola a separação dos poderes, e assevera a realização de todas medidas sanitárias necessárias para evitar a contaminação da COVID-19, destacando ainda que não cabe ao Judiciário intervir nas políticas públicas adotadas pelo Poder Executivo. Pede ao final o indeferimento da tutela de urgência.

Verifica-se também nos autos que a Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Rio Grande do Norte – FECOMERCIO/RN, apresentou pedido de habilitação como Amicus Curiae, com o fito de prestar assistência especializada quanto ao interesse subjetivo dos seus sindicalizados. É o relatório. Decido.


Preliminarmente, a par do pedido de habilitação da FECOMÉRCIO/RN como Amicus Curiae na presente Ação Civil Pública, defiro-o com base no art. 138 do CPC, considerando a relevância da admissão deste terceiro como fonte de subsídios instrutórios à solução da causa, que se reveste de relevância social, e não enxergando qualquer prejuízo às partes com a sua participação os autos. Posto isso, determino que a Secretaria Judiciária promova a inclusão da referida entidade sindical para compor a lide como terceiro (amicus curiae), recebendo as intimações acerca das decisões tomadas nos autos. Passo a análise da pretensão.


Trata-se de Ação Civil Pública na qual os órgãos autores se insurgem contra o que entendem ser omissão do Estado do Rn, ora demandado, que consistiria em não implantar, através do citado Decreto, todas as medidas necessárias para o enfrentamento da epidemia de COVID-19.


Destacam, para tanto, que há dois anos vivenciamos uma pandemia mundial do Coronavírus (COVID-19), tendo sido diversas as medidas públicas adotadas para minimizar os impactos da doença na população, inclusive com a adoção da vacinação em massa.


Afirmam que, no início de janeiro deste ano, com o avanço da variante Ômicron, houve explosão do número de casos de COVID-19 no Estado, ocasionando o aumento da taxa de ocupação dos leitos de UTI COVID para 74,17% (setenta e quatro por cento).


Diante desse quadro, o Comitê de Especialistas da SESAP para o enfrentamento da pandemia COVID-19 emitiu Recomendação no 33, apresentando tendências e estratégias de controle da doença, apontando medidas necessárias para que o cenário epidemiológico não evolua para um quadro de piora. E dentre asestratégias propostasestáa exigência de apresentação de certificado de vacinação nos estabelecimentos comerciais e o cancelamento de grandes eventos até controle da situação, diante do avanço da epidemia, agora atravésda variante Ômicron.


Argumentam os autores queo Decreto Estadual no 31.265, de 17/01/2022, além de outras medidas de enfrentamento tomadas, implantou apenas a exigência de apresentação de certificado de vacinação nos estabelecimentos comerciais, sem cancelar os grandes eventos de massa que concentram em um único local muitaspessoas, o que facilitaria o contágio da doença. Diante dessa possibilidade de realização, acreditam os requerentes que o cancelamento de eventos públicos deve ser adotado como medida de enfrentamento direto da pandemia, na situação vivenciada atualmente.


Inicialmente, entendo que é preciso deixar assente que a análise da pretensão autoral não pode ser examinada de maneira dissociada do contexto fático vivenciado pela sociedade civil no presente momento, composto por um quadro de complexidade na saúde pública em razão da disseminação maior da variante Ômicron do coronavírus, mas que também vivencia um amplo programa de vacinação para buscar prevenir ou atenuar a doença que ele pode provocar. Destaco desde já, nesse espectro, diante da importância na questão da prevenção, que o ato administrativo editado pelo Estado do RN, como se vê em seu texto, não descurou de impor a exigência do passaporte de vacinação para o acesso aos eventos de massa, sejam públicos ou privados, além da adoção de outras medidas sanitárias para fins de evitar a contaminação pelo vírus, como o uso de máscaras.


O art. 6o do Decreto 31.265/2022 impôs a comprovação do esquema vacinal em conformidade com o calendário de imunização, sem prejuízo das demais medidas elencadas nos Decretos Estaduais 30.676/2021 e 30.940/2021, ficando dispensada a exigência do passaporte de vacina apenas para eventos limitados a 100 pessoas. É sobre a liberação de eventos posta no Decreto que se insurgem os órgão autores, mesmo que com a exigência de comprovante de vacinação, buscando proibir a realização através de decisão judicial de caráter antecipatório.

Ninguém ignora que a pandemia provocada pela disseminação do novo coronavírus (COVID-19) adquiriu uma magnitude global e o Brasil não é exceção, enfrentando focos de disseminação da doença em todas as regiões do país. Com base nesse quadro fora decretado, inclusive, situação de calamidade pública de âmbito nacional já no seu início, no ano de 2020. A situação demandou muita discussão, debates e adoção de medidas enérgicas implementadas pelo pelo Poder Público de maneira coordenada, embora com divergências entre entes federados, como se sabe.


A realidade daquele momento evidenciou situação que se entendeu, corretamente, ser de extrema excepcionalidade, diante não só do desconhecimento da doença, mas também do aumento da demanda no atendimento à saúde, impondo mudança em diversos setores da sociedade como forma de tentar coibir o avanço do vírus. O referido quadro de anormalidade repercutiu inegavelmente nas relações sociais e econômicas dantes vivenciadas pela coletividade, e o excepcional foi adotado como forma de preservar a garantia maior ao direito à vida. E nesse caminhar delegou-se ao Judiciário, várias vezes, desde o início da pandemia, seja visando a esfera pública seja visando a esfera privada, a adoção de soluções que não teriam sido propostas pelos governos dos entes federados, ou que teriam sido erradamente adotadas para combater medidas por eles adotadas. E naquela ocasião, necessário registrar, não se tinha ainda as vacinas.Mas agora, mesmo com a vacinação, mesmo com a construção de um consenso federativo acerca do combate à pandemia,continua o Judiciário sendo chamado a intervir nessa seara, como é a situação ora posta na pretensão deduzida pelos autores.


Estamos agora diantede ação judicial através da qual se busca mais uma vez o Judiciário para emitir decisão sobre ações governamentais relativas à pandemia de COVID-19, que já dura mais de dois anos. Como se sabe, desde o início da circulação do vírus causador da pandemia, governos, pesquisadores, médicos, vem se mobilizando a fim de dar uma resposta rápida contra aquela que já entrou para a história como uma das piores pandemias. E felizmente já encontraram algumas respostas, dentre elas, destacadamente, a vacina.


O que chama a atenção deste julgador é que, nesse ambiente da pandemia onde em outras partes do mundo se comunicam governos, cientistas, pesquisadores, médicos e tantos outros profissionais, para agir e tomam decisões sobre suas ações, no Brasil é o Judiciário que vem sendo chamado, desde o início da pandemia, e cada vez mais, para agir como se governo fosse. O Brasil é, certamente, o único país do planeta onde as ações governamentais relativas à pandemia estão sendo quase que sistematicamente questionadas na via judicial. É como se o Judiciário estivesse sendo o próprio Governo. 


Decididamente, o Judiciário não pode ter essa primazia institucional, pois isso afastaria qualquer lógica política e lógica jurídica que estão na alma e no corpo de nossa Carta Política, nosso pacto social.


Pesquisas realizadas por este juiz mostra que em outros países se constatou aumento de demandas judiciais, mas de iniciativa privada, em razão principalmente de impactos econômicos causados pela pandemia. 


O que se encontra nessas pesquisas são ações privadas em razão de quarentena, ações trabalhistas, obtenção de proteção individual, dentre outras, e não são muitas. Mas no nosso caso a questão do controle judicial das políticas públicas de combate à pandemia emergiu muito forte, ao ponto, inclusive, de ter o STF, Corte Suprema do país, sido chamado a intervir logo no início das primeiras providências legais e administrativas tomadas pelos entes federados. E a busca por esse controle judicial das políticas públicas espalhou-se pelo Brasil, bem ou mal, certo ou errado.

Penso que não deveria o Judiciário substituir o juízo administrativo dos governantes – que são orientados e auxiliados por pesquisadores, cientistas, médicos e outros profissionais – em relação à proibição de eventos, por exemplo, mesmo quando esse juízo é formado mais fortemente a partir das orientações de entes vinculados à área de saúde. Isso porque penso ser correto afirmar que não se pode partir da preconcepção de que o governante seja um irresponsável apenas porque discordou de uma orientação. 


Ninguém é tão inocente que não saiba que decisões e posicionamentos político-ideológicos tem tumultuado o ambiente social e as ações governamentais de combate à pandemia. Mas há que se ter em mente, com muito maior convicção, que as decisões governamentais precisam ser preservadas, para que não se imponha, como diuturnamente se está a fazer neste país, uma supremacia judicial sobre o agir governamental.


É certo, e ninguém discorda ou ignora, que não se está no fim da pandemia, e essa realidade continua a exigir a atuação dos governos na área de saúde, em todos os países. Mas nenhum, exceto o Brasil, acredito, precisou de intervenção judicial para impor essa ou aquela diretiva ou orientação no trato com essa tormentosa questão da pandemia do coronavírus pelos governos. Falhas ocorreram e não foram poucas ao longo do combate à pandemia. Mas o conhecimento científico que acabou por nos legar, com rapidez, uma vacina, vem sendo a bússola para que possamos, governos e sociedade, agir para poder derrotar o vírus, mais dias menos dias. E são os governos que editam atos, mediante juízo administrativo, para que se persiga e se possa vencer essa luta, destacando-se que no momento atual já não se propõe ou se exige a imposição de medidas duras como se teve que tomar em passado recente, como o forte isolamento social, providência que se mostrou necessária e eficaz para conter a maior disseminação do vírus. Pois não havia vacina naquele momento!


Decorridos já dois anos dessa ameaça invisível e até então desconhecida, que vitimou milhões em todo o mundo, o principal ensinamento que nos é legado é que a arma mais eficiente contra o vírus é a vacina, proporcionada pela atuação global de médicos e pesquisadores que primam pela divulgação da verdade científica, aliada com a adoção de outras medidas de natureza sanitária, que vem sendo implementadas pelos governos. O Judiciário interferir nessa seara, a cada edição de ato governamental, a cada agir, a cada opção política do governante, não me parece ser uma solução adequada.


Mas, por outro lado, não posso afastar a realidade e a vontade captadas pela Constituição Federal - e temos que louvar isso sempre – de se buscar o Judiciário quando se entender que está havendo ou poderá haver lesão a direito, seja privado ou público, como se aventa ocorrer no presente caso, porquanto entendem os órgãos autores desta ação civil (MP e DP) que existe ameaça à sociedade com a edição de uma vontade governamental que liberou a realização de eventos, públicos ou privados, mesmo que mediante a apresentação de comprovante de vacinação (passaporte de vacina) e medidas sanitárias outras (como uso de máscaras).


A rigor, o que se pede nesta ação é que o Judiciário edite um ato normativo (que é a decisão judicial), agindo em substituição à atuação governamental, cassando, para ser mais preciso, o juízo administrativo que optou pela liberação da realização de eventos públicos e privados no âmbito do Estado do RN, mediante condições. Pede-se que o Estado anule/cancele todas as autorizações concedidas às promotoras de eventos, se abstenha de conceder novas autorizações e suspenda a realização de shows e eventos em todo o Estado. Penso que tal pretensão não deve ser acolhida, ao menos a partir dessa primeira análise para fins de apreciação da tutela de urgência.


Não me parece que, no caso, haja ilegalidade no agir do Estado do RN, por sua Governadora, ao decidir pela liberação, com o cumprimento rigoroso dos protocolos sanitário, especialmente o comprovante de vacinação. Evidente que o Governo do Estado – assim como nenhum outro, penso – tomaria uma decisão de editar um ato normativo sem levar em consideração a análise dos diversos indicadores sobre a pandemia, como a exigência do passaporte da vacina, por exemplo.


Antevejo que possíveis alegações de inconstitucionalidade do Decreto Estadual no 31.265/22, publicado em 18.01.2022, não se sustentariam. É preciso ter em mente que o referido ato normativo foi editado como meio de combate a propagação do coronavírus, sendo, portanto, uma medida de proteção à saúde, que se enquadra na competência comum da União, Estados e Municípios, na forma do art. 23, inciso II, da Constituição Federal, cuja transcrição considero oportuna:


“Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:


(...)

II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;” (Grifos acrescidos)


Dessa forma, ante a finalidade da edição do citado Decreto e de tantos outros atos normativos já levados a efeito com a mesma finalidade, considero perfeitamente legítima a regulamentação dessa matéria pelo Poder Executivo Estadual.


Cumpre destacar inclusive que o Supremo Tribunal Federal já se pronunciou de maneira consonante, quando da apreciação de questão correlata, conforme se observa da análise do seguinte julgado:

“SAÚDE – CRISE – CORONAVÍRUS – MEDIDA PROVISÓRIA – PROVIDÊNCIAS – LEGITIMAÇÃO CONCORRENTE. Surgem atendidos os requisitos de urgência e necessidade, no que medida provisória dispõe sobre providências no campo da saúde pública nacional, sem prejuízo da legitimação concorrente dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.


(...)

As providências não afastam atos a serem praticados por Estado, o Distrito Federal e Município considerada a competência concorrente na forma do artigo 23, inciso II, da Lei Maior.(STF, Medida Cautelar na Ação de Inconstitucionalidade no 6.341/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 24/03/2020)” (Grifos acrescidos)


Nesses termos, em conformidade com a posição do Supremo Tribunal Federal acerca da matéria, não vislumbro qualquer vício de inconstitucionalidade no decreto questionado. Trata-se de ato legítimo do Poder Executivo Estadual, lavrado a partir do juízo administrativo que o governante entendeu ser conveniente e oportuno.


Ultrapassada essa questão, passo a tecer maiores considerações sobre os termos do pedido de tutela antecipatória de urgência.


 Impõe-se, para deferimento da medida, a presença simultânea dos requisitos verossimilhança das alegações e perigo de demora. A verossimilhança das alegações é a aparência do direito subjetivo em discussão no processo. O perigo da demora significa o perigo de dano derivado do retardamento da medida definitiva, e pode provir da demora em obter-se a prestação jurisdicional.


Em análise a tais requisitos, não vislumbro a plausibilidade do direito invocado, para justificar a concessão da medida antecipatória requerida no presente caso. Justifico.


Segundo informa o Estado do RN, a realização de eventos de massa dependerá de autorização prévia da SESAP, após análise do cenário epidemiológico pelos órgãos estatais, e todos os protocolos a serem adotados devem ser submetidos à apreciação dos órgãos com pelo menos 15 dias de antecedência. Diz ainda que tais eventos serão fiscalizados, pois representam um alvo de atuação da Vigilância Sanitária. E destaca que a principal medida a ser adotada será a comprovação da vacinação, considerada a aplicação da D2 e a D3.


São razoáveis os argumentos do Estado do RN, na questão ora posta à apreciação judicial. Reforça seus argumentos informando, inclusive, a suspensão de apoio financeiro estatal para quaisquer eventos de massa. A exigência do comprovante de vacinação para acesso a esses eventos, como posto no Decreto, é, ao nosso sentir, uma imposição legal razoável e recomendada, que se coaduna com a ideia de se liberar a realização desses eventos desde que cumpridos todos os protocolos sanitários e exigido o comprovante de vacinação. Evidente que isso não significa dizer que tanto o ente público como o Judiciário devem ignorar o cenário atual, que implicou em aumento da contaminação em razão da variante ômicron. Mas, como ressaltado pelo ente público, são bem menores as consequências no momento, em razão da elevação da vacinação, e não seria razoável, nesse cenário, simplesmente proibir todo e qualquer evento que possa vir a ser realizado obedecendo todos os protocolos e normas de segurança sanitárias, como a exigência do comprovante de vacinação.


Não se estar aqui a dizer que o bem-estar coletivo, sem riscos à saúde em razão da pandemia, não deve preponderar sobre a decisão individual de realização de eventos de massa, inclusive shows que poderão contribuir para a disseminação de um vírus com alta carga de contaminação, como dito na inicial. Não é isso. O que se está a afirmar – e repito – é que no momento atual, diante da realidade vivenciada, conforme informações trazidas pelo ente estatal, me parece que o juiz deve ser mais pragmático, não podendo ignorar a atividade e o juízo administrativo do governante, que emitiu normas jurídicas através do Decreto 31.265/2022 - pelos fundamentos que entendeu pertinentes -, às quais toda a sociedade deve obediência, e não se pode olvidar também os seus benefícios no combate à pandemia, e ainda o que enxergo ser um caminho para conduzir a uma pacificação sobre o tema em questão – liberação de eventos de massa neste momento –, sob pena de o julgador incorrer em tirania.


Nessa compreensão pragmática, encontro conforto intelectual nas palavras postas pelo ilustre magistrado da 3a Vara da Fazenda Pública de Natal, Dr. Geraldo Antônio da Mota, quando assentou que “... a amplitude e complexidade do quadro que se descortina não permite ao Judiciário intervir nas políticas públicas adotadas pelo Poder Executivo Estadual. Com efeito, o Poder Executivo é quem detém legitimidade e condições técnicas para aferir os setores mais essenciais e deficitários de modo a orientar a consecução de medidas mitigadoras de propagação da pandemia. A interferência do Judiciário nesse quadrante se revelaria incabível e precipitada.” (Processo 0802005-93.2022.8.20.5001).


Como dito no início desta decisão, não deveria o Judiciário intervir na questão. Mas, por outro lado, quando chamado, como agora,terá que dar resposta, seja afirmativa, seja negativa. No caso, em que pesem os argumentos postos na inicial, é preciso que também se considere as ponderações feitas pelo ente público. Penso que o Poder Executivo Estadual não adotaria o juízo administrativo que ora se questiona sem levar em consideração as consequências sistêmicas, e não só específicas, da situação de pandemia ora vivenciada, conforme destaquei nas considerações acima expostas.

Penso também que apesar das circunstâncias excepcionais do momento, é preciso que se confira um peso mais preponderanteàs demais medidas que estão sendo adotadas pelo ente público, notadamente a exigência de comprovação de vacinação eo controle administrativo para fins de liberação de eventos. 


Acaso se adotasse aqui rígido formalismo jurídico, nos termos propostos pelos autores, para fins de cassar o que posto no Decreto, estar-se-ia adotando, pela via judicial, uma completa substituição do processo decisório político-administrativo do Poder Executivo. E não podemos esquecer que assim como o juiz usa a razoabilidade como critério último da decisão judicial, o governante também ausa, com certeza, no seu atuar administrativo, sem esquecer que existe nesse atuar do agente político um amplo campo de discricionariedade – e que o juiz não tem -mormente quando se busca encontrar uma solução que se afigure a mais adequada para a hipótese do mundo empírico. Me parece bem correta e adequada a afirmação do ente público de que somente o Poder Executivo pode aferir o que é melhor para a Administração Pública, pois possui todos os dados e informações acerca dessa área de atuação, e busca implementar medidas conforme as necessidades que entende prioritárias.


Certamente que o Estado do RN fará o monitoramento de toda a situação que se está vivenciando, e poderá rever o juízo administrativo que importou na possibilidade de liberar a realização de eventos, obedecidas as normas sanitárias, inclusive de exigência de passaporte de vacina. Esse agir estatal obviamente será aderente à realidade empírica que for vivenciada, sem descurar que a qualificada discricionariedade do Poder Executivo possibilita margem para decisão política do governante, pautada, em qualquer condição, pelo dever ético e legal. Assim penso que as exigências contidas no Decreto, para fins de liberar (ou não) os eventos de que trata, contém um equilíbrio entre o que prescrito, a situação ora vivenciada e os efeitos que podem advir, a serem verificados e embasarem o juízo administrativo que for eventualmente adotado doravante. É, pois, o caso de não substituir a vontade do Poder Executivo pela do Judiciário.


Postas estas considerações, entendo que não resta presente o requisito da plausibilidade do direito invocado, em razão até mesmo da extrema, complicada e não recomendável, no caso concreto, tarefa de sindicar o juízo administrativo do Poder Executivo Estadual, que resultou na liberação dos eventos de massa mediante condições impostas pelo próprio Executivo, no mesmo Decreto e com base em outras normas jurídicas. Penso que em situações como a que ora postas o juiz não pode ficar preso exclusivamente no mundo jurídico, no qual pode até mesmo se perder, desconectando-se da realidade social do momento, que é, sem dúvida, melhor analisada no âmbito da Administração Pública quando se trata de questões afetas ao combate à pandemia.


ISTO POSTO, indefiro o pedido de tutela antecipada formulada pelos autores.


Intime-se, com urgência, o Estado do Rio Grande do Norte, através da Procuradoria Geral do Estado, e o Secretário Estadual de Saúde, pessoalmente, da presente decisão.


Inclua-se a entidade sindical FECOMERCIO/RN no sistema PJe como terceiro (amicus curiae), devendo receber as intimações acerca das decisões tomadas nos autos.

Cumpridas as determinações indicadas acimas, cite-se a parte ré, por intermédio do Procurador-Geral, para responder ao pedido inicial no prazo de 30(trinta) dias, contados na forma do artigo 219 do CPC.

Se a defesa comportar matéria preliminar postas no artigo 337, do CPC, ou documentos, intime-se a parte autora para pronunciamento, no prazo de 15 (quinze) dias.

E em seguida, retornem os autos conclusos para sentença.


Publique-se. Intime-se.


NATAL /RN, 27 de janeiro de 2022.


CÍCERO MARTINS DE MACEDO FILHO


Juiz(a) de Direito

Autor(a): Eliana Lima



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