Cultura

Mistérios dos Lettieri: casarão na Ribeira preserva piso com ladrilhos em formato que remete ao temido símbolo do nazismo

30 JUL 2023

Revista Bzzz ficou notabilizada por contar histórias. Reúne hoje o maior resgate da história do Rio Grande do Norte, de pessoas a imóveis. De outros lugares do Brasil e do mundo.


Sobre um deles, o curioso casarão da que pertenceu ao italiano Guglielm Lettieri contamos na edição de abril de 2014, com matéria assinada pela jornalista Janaína Amaral, que entrevistou o historiador Rostand Medeiros, grande colaborador da Bzzz que ajuda a lembrar a história potiguar.


Eis a matéria:


Quem passa pela Rua Câmara Cascudo, no histórico bairro da Ribeira, depara-se com vários casarões antigos, entre eles o de número 184, imponente e conservado pelo saudoso historiador Leonardo Barata, que comprou o casarão para preserva-lo.


O palacete foi residência do italiano Guglielm Lettieri, que veio com a família para o Brasil no ano d 1907 e, depois de passar pela cidade do Rio de Janeir escolheu Natal, em 1915, para constituir família, qu hoje consagra a sexta geração. Na década de 30, ele co mandou a única fábrica de gelo da cidade.


A casa foi construída com mão de obra italiana. A imponência começa no pédireto alto, com vigas de trilho de ferro originadas do século XIX, mesmo componente usado para fazer as estradas de ferro do Rio Grande do Norte. Mas, o que mais desperta a curiosidade na arquitetura é o piso do salão principal, formado por ladrilhos que remetem à cruz suástica, o malvisto símbolo nazista.


E por que o símbolo da suástica? Segundo o historiador Rostand Medeiros, a suástica "é um símbolo que muitas vezes funciona como uma coisa positiva. Naquele tempo, por exemplo, era usada como propaganda. Existia um posto de gasolina que utilizava esse símbolo, então, o fato de na casa de Lettieri ter o piso com suástica não quer dizer que existia uma predileção pel nazismo, poderia ser apenas algo que remetia ao bem".


Continua: “É fazer as contas: o nazismo ascendeu na Alemanha em 1933, a casa é de 1910. Trabalhar com a hipótese de que Lettieri tenha mudado o piso acho improvável, ele era italiano e eram os alemães que utilizavam a suástica como símbolo nazista. A suástica é utilizada no budismo, no hinduísmo e em outras nações".


Desde que foi adotado como logotipo do Partido Nazista de Adolf Hitler, a suástica passou a ser associada ao fascismo, ao racismo, à supremacia branca, à II Guerra Mundial e ao Holocausto. Na maior parte do Ocidente, vários povos adotavam a suástica como representação do bem, pontua o historiador.


Guglielmo Lettieri foi escolhido representante consular do governo italiano em Natal. No posto, recebeu e apoiou os aviadores italianos Arturo Ferrarin e Carlo Del Prete, em 5 de julho de 1928, que realizaram o primeiro voo sem escala entre a Europa e a América do Sul e pousaram na Praia de Touros, a cerca de 80 quilômetros ao norte da capital potiguar, após um voo de mais de 49 horas.


Ficou ao seu cargo, em 1931, recepcionar a esquadrilha que trouxe a Coluna Capitolina, uma coluna originária do Monte Capitólio, em Roma, que o ditador Benito Mussolini presenteou o povo do Rio Grande do Norte em agradecimento pela boa acolhida oferecida aos aviadores italianos. 


Monumento que foi por vezes considerado um símbolo fascista e, em 1935, durante a

Intentona Comunista, chegou a ser derrubada.


Com a Segunda Guerra Mundial, Lettieri e mais três pessoas - Luck, Burges, Weberling - foram acusados de espionagem, de serem informantes do Eixo (grupo formado pela Alemanha, Itália e Japão) e fascistas. Terminaram condenados a 14 anos de prisão pelo Tribunal de Segurança Nacional, sentença do juiz Eronides de Carvalho. No dia 25 de Junho de 1942, a notícia da prisão foi publicada nos principais jornais. Foram anistiados ao fim da guerra.


"Essas pessoas presas vieram morar em Natal bem antes da guerra e durante o conflito eles não se colocaram como brasileiros, mantiveram sua nacionalidade. Em Parnamirim, estava sendo construída a maior base americana fora dos Estados Unidos e a Rampa já recebia pilotos e aviões americanos. Natal estava sendo construída e todos esses fatos fizeram com que eles fossem condenados e considerados espiões", relata Rostand, pesquisador e escritor do tema Segunda Guerra Mundial.


Rostand explica que muitos italianos vieram para o Rio Grande do Norte no século XX trabalhar na construção da estrada de ferro central, do outro lado do Rio Potengi, em direção ao município de Lajes. "Não sei se Lettieri participou dessa construção, mas muitos italianos e espanhóis vieram para Natal nesse tempo devido a essa oferta de trabalho".


Reza a lenda que foi na então casa que representava o consulado italiano que o historiador Câmara Cascudo recebeu a Medalha do Rei Vitório, uma lata condecoração fascista. Após a morte de Guglielmo Lettieri, a família vendeu o imóvel à Bolsa de Valores do Estado, que funcionou por muitos anos no local.


Família Lettieri


Dos herdeiros, conversamos com uma das netas de Guglielmo, a professora aposentada Elinete Matoso Lettieri Pinto. Ela não soube detalhar sobre o avô, era muito pequena na época, mas considera importante preservar a memória da família. 


É filha de Galileu Lettieri e tem mais seis irmãos. O avô e o pai morreram de infarto.

Elinete diz que seu avô era comerciante

e gostava muito de cozinhar. "Ele fazia um porco assado com uma maça na boca que eu ficava admirada. Eu devia ter uns 9 anos". Conta que ele foi condecorado com o título de Cavaleiro do Rei. "Era um comerciante sagaz". 


Com documentos históricos, mostrou que era dono do Armazém G Lettieri, que ocupava três galpões da Rua Chile, 106, 109 e 110, na Ribeira, onde vendia alimentos a grosso e a varejo, além de bebidas como vinho e uísque e cereais. "Um dos galpões funcionava a Casa da Ribeira", diz.


Lettieri também possuía uma fábrica de gelo, uma cantina e uma fábrica de refrigerante, o Guaraná Royal, que funcionava na Rua Felipe Camarão, Centro. Também teve uma fábrica de vassouras, chamada Leque, na Rua Chile. "Ninguém da nossa família é comerciante, somente meu filho, que pertence à sexta geração", detalha Elinete.


Dono de fazenda onde hoje é o bairro de Potilândia


Elinete não sabe o que motivou a venda do casarão na Ribeira. Além de muito nova na época, assuntos dessa natureza não eram compartilhados com as crianças. A fase que ela recorda é da fazenda local, onde a família costumava a ir aos finais de semana. 


"Quando vovô vendeu a casa na Ribeira, veio morar em Potilândia, o bairro inteiro era a fazenda dele. Lembro que a casa principal ficava onde hoje funciona o Sesc Potilândia. Era muito grande e ele plantava eucalipto para espantar os mosquitos. Tinha também um minizoológico lá dentro, com veado, passarinhos, cavalos. Íamos muito, eu gostava bastante", recorda.


Conta também que o avô se casou três vezes, mas ela não conheceu nenhuma das três esposas. "Com a primeira esposa, Concita Lettieri, eles tiveram duas filhas, Argentina e Alzira. Com a segunda esposa, Ângela, tiveram três filhos, Galileu Pedro, Iolanda e Concita. Com o falecimento de Ângela, que não resistiu ao parto, Lettieri se casou com dona Júlia, que já tinha uma filha e ele adotou, que se chama Josélia. Depois adotaram um menino, Emanoel. Todos os filhos de vovô já faleceram", relata.


A família está na sexta geração e todos preservam o sobrenome italiano Lettieri. Elinete e outros membros da família já foram à Itália conhecer os descendentes. "Faz uns cinco anos que fomos à Itália. A maioria de nossos familiares italianos é de comerciantes como vovô. São pessoas agradáveis, pretendemos retornar com mais tempo".


"Na minha infância tudo era mais severo, acredito que pelo fato de eu ser mulher não era conversado esse tipo de assunto. Papai faleceu faz 12 anos, de infarto, e nunca nos aprofundamos sobre esses detalhes", explicou.




Autor(a): BZN



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