Política

STF sem magistrados de carreira

12 ABR 2021

Muito pertinente o artigo do desembargador aposentado Vladimir Passos de Freitas sobre o cenário da magistratura e do STF, sob o título "Magistrados de carreira e STF: mundos paralelos que pouco se comunicam".

Eis a íntegra:

Ministros do Supremo Tribunal Federal e juízes de carreira, no passado, mantinham relacionamento fraterno, muito embora mantidas as diferenças de posições e a hierarquia. Os ministros estimulavam os juízes, participando de seus encontros, recebendo-os com atenção na Corte e se interessando por suas atividades.

Com 54 anos de atividade na área jurídica, tenho retida na memória a educada atenção de Djaci Falcão, a convivência agradável com Néri da Silveira, a cordialidade de Sydney Sanches e a simplicidade amiga de Ilmar Galvão. Bem me recordo de uma manhã de 1995 ou 1996, em um hotel de Salvador, em que fui falar sobre águas e meio ambiente, tendo na frente da assistência ninguém menos do que o ministro Moreira Alves, fluente em sete idiomas e uma cultura jurídica sem limites. Polidamente, ele fez alguns comentários e assim, aos poucos, minha respiração voltou ao normal.

Bem diferente é a situação atual. De alguns anos até esta data, seguiram os magistrados da base da pirâmide e os juízes supremos caminhos diversos, que a cada dia se revelam mais distantes.

Juízes de carreira, aprovados em concursos extremamente rigorosos, são formados nas escolas da magistratura com visão de como comportar-se, comunicar-se com a sociedade, com a mídia e, acima de tudo, com a disciplina focada na Lei Orgânica da Magistratura Nacional, de 1979.

E assim ouvem e são orientados a manter vestimentas formais, inclusive nas audiências on line, a não emitir opinião sobre casos pendentes de julgamento, a não criticar decisões de colegas, a manter postura inclusive fora do exercício das funções e nas redes sociais, tudo de forma a manter-se a unidade do grupo e o respeito pelo Poder Judiciário.

Dir-se-á que assim não se passa aqui ou ali, que na Vara X há um juiz que não atende advogados e na Y há uma juíza que maltrata testemunhas em audiência. Sim, há casos de má conduta, por certo. E não poderia ser diferente em um país que conta com mais de 17.000 magistrados. Há, até, quem ouse decidir pedido formulado pelo próprio filho, preso dirigindo embriagado, violando a regra secular e mais notória de impedimento por parentesco.

Mas tais casos não são regra, são exceção. E por esta condição, evidentemente, tornam-se mais visíveis, comentados. O importante é que, quando surjam, sejam objeto de pronta atenção da Corregedoria de Justiça. Aconselhando em um primeiro momento, processando se o alerta não for levado a sério.

Bem diferente é a judicatura suprema. Ministros da Corte indicados nos últimos anos, na sua maioria absoluta, não são juízes de carreira. São professores, advogados, juízes de tribunais oriundos do quinto constitucional e, por tal condição, possuem formação e visão de mundo totalmente diversa.

Não se lhes nega, em momento algum, cultura geral e jurídica. Muito ao inverso, são reconhecidamente detentores de conhecimentos profundos, especialmente dos doutrinadores contemporâneos da Europa. Fortes nesta linha e afastados da formação típica da magistratura de carreira, agem de forma diversa. Disto bastam três exemplos: a antecipação da posição em matéria a ser submetida a julgamento; a crítica pública a colegas de igual hierarquia ou de Tribunais inferiores; e as declarações à mídia sobre os mais diversos assuntos, inclusive alguns totalmente estranhos ao Direito.

Estas visões diversas de mundo e o comportamento que delas decorre, vem criando um fosso profundo, outrora inexistente, com consequências nocivas, entre a magistratura de carreira e os juízes da Corte. Isto porque o STF é e sempre foi o guia da conduta da magistratura brasileira, o exemplo por todos seguido, o farol a alertar os navegantes sobre os riscos no percurso.

No entanto, quando dois tipos de conduta se mostram antagônicos (e.g., discrição x entrevistas) ou de reação diferente diante da LOMAN (proibição de antecipar julgamento, art. 36, inc. III), terminam os juízes de primeira instância, cujo número corresponde a um percentual estimado de 90% ou mais do total, sem saber o rumo a tomar.

Ainda, incidentes e críticas exacerbadas, decisões pouco compreensíveis com consequências locais não consideradas, desprezo a verdadeiros dogmas jurídicos, como o secular princípio da legalidade, afastado ao julgar-se o “enquadramento da homofobia e da transfobia como tipo penal definido na Lei do Racismo (Lei 7.716/1989) até que o Congresso Nacional edite lei sobre a matéria”.1 Registro aqui que também concordo que tais condutas devem ser criminalizadas. Porém isto cabe ao Congresso fazer.

Mais. Decisões sobre questões típicas do Poder Executivo e Legislativo suscitam incompreensão e revolta nos referidos Poderes de Estado. Por vezes, liminares que se dessem à autoridade impetrada 48 hs para manifestar-se, poderiam levá-la a corrigir seu procedimento. Ou que, levadas ao Plenário, evitariam o inconformismo dos outros Poderes com a intervenção em assunto de sua alçada.

Este estado de coisas, único na história do Judiciário brasileiro, tem deixado a magistratura desorientada. Reportagem desta revista eletrônica, semana passada sobre aposentadorias precoces, teve grande repercussão, principalmente na magistratura de carreira.2 Isto é um fato, com certeza. No Tribunal de Justiça de Rondônia, neste ano de 2021, 4 desembargadores, em um total de 21, aposentaram-se. Em Santa Catarina, a recente aposentadoria do desembargador Ronei Danielli, com apenas 10 anos de Tribunal (nomeado pelo quinto constitucional), causou perplexidade. A aposentadoria do ministro Néfi Cordeiro, do STJ, é uma silenciosa manifestação de desencanto com a carreira.

No Tribunal de Justiça de São Paulo, a recente aposentadoria do desembargador Everaldo Colombi, que vi entrar na carreira como entusiasmado substituto e assim fazer sua trajetória profissional, veio com uma explicação na sua página no Facebook3 que surpreende e entristece:

Everaldo de Melo Collombi
6 de Abril, às 10 e 19

Hoje me despeço oficialmente da magistratura. Agradeço a homenagem que recebi, encabeçada pela querida desembargadora Lígia Bisogni e desejo compartilhar com os amigos. Desde os 26 anos de ingresso , como Juiz Substituto , percorri todos os degraus da carreira até me tornar Desembargador. Foram mais de 43 anos, em que aproveitei cada segundo, com o único objetivo de fazer justiça. Saio com a consciência de dever cumprido. Sempre honrei a toga. Apesar da responsabilidade , o exercício da judicatura, foi natural, leve. Em janeiro de1978, quando ingressei, presidia a Corte Suprema, o Ministro Thompson Flores, que, por si só, dignificava e ditava o rítmo da respeitada Magistratura brasileira. Hoje, no particular, faço silêncio. Essa tristeza tenho que carregar ao me despedir. Os meus respeitos ficam por conta dos colegas de primeiro e segundo grau. Vida que segue!

Por óbvio o STF não pode ser apontado como a origem única do desestímulo dos magistrados. As causas são muitas, vão da lei de abuso de autoridade, que intimida os juízes e leva os mais fracos a se acomodarem como burocratas, até às críticas que lhes são direcionadas, apesar de outras carreiras jurídicas gozarem das mesmas vantagens (MP por exemplo) ou receberem vencimentos iguais ou maiores, sem os ônus da responsabilidade de julgar (AGU, por exemplo).

Na verdade, o tema envolve um mosaico de circunstâncias e não deve ser tratado com a paixão que se tornou a tônica neste país, onde se ofende o próximo sem 30 segundos de reflexão e sob a proteção da tela do computador (ou celular) que inibe a presença física do ofendido.

Em síntese, o STF sempre foi e deve continuar sendo uma Corte que imponha o respeito que sempre lhe foi dedicado, traga tranquilidade ao país e estímulo à magistratura nacional, fazendo jus às suas honrosas tradições.

Em tempo

Vladimir Passos de Freitas é ex-secretário Nacional de Justiça no Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).

Autor(a): Eliana Lima



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