01 MAR 2021
Nesses tempos difíceis por demais, a capital dos magos-saudosos ficou menos saborosa. Pelo menos temporariamente.
Com dor na alma, fomos pegos de surpresa hoje (1º) com o comunicado da mais querida Ignez Motta de que seu Nick Buffet encerrou as atividades, temporariamente. Que seja muito temporário, mesmo!
Trata-se da mais tradicional casa de sabores de Natal, que tem em seu currículo grandes eventos, inclusive um jantar para o papa João Paulo II, quando esteve em solo potiguar.
Mais abaixo transcrevo entrevista que Elza Bezerra fez com dona Ignez em seu excelente blog.
A entrevista por Elza Bezerra:
Ignez Motta de Andrade tem uma fisionomia serena e um sorriso estampado no rosto. Acolhe a todos como um colo de mãe. Suas mãos abençoadas iniciaram o trabalho na costura, mas logo foram deslocadas para quitutes saborosos.
Lembro bem de sua primeira lanchonete na Rua Gonçalves Ledo, no centro da cidade de Natal. Era para lá que mamãe nos levava para aliviar o sofrimento do dentista, que funcionava na mesma rua. Ganhávamos balas de leite da Kopenhagen, um luxo que ela trouxe para Natal, quando ninguém conhecia a famosa marca de chocolates.
D. Ignez, como é chamada pelos mais queridos, abriu a Nick Buffet e foi pioneira em Natal. Filha do industrial João Francisco da Motta, estudou na Escola Doméstica, casou com o Advogado Epitácio Lira Aquino de Andrade, mas fez carreira independente.
Da pequena lanchonete passou para a casa que foi do Deputado Djalma Marinho, onde inaugurou um almoço buffet aos domingos. Depois transferiu-se para a sede do América Futebol Clube e passou a atender eventos. Finalmente, retornou para a casa onde morou na Avenida Hermes da Fonseca, que transformou no lugar de receber e produzir seus sabores.
A Nick Buffet já completou 46 anos de existência, com D. Ignez e Verônica, sua filha, produzindo deliciosas iguarias que enchem de sabor as mesas potiguares.
Nossos aniversários são próximos e, todo ano, recebia de D. Ignez um bolo para celebrar a data. Em tempo de coronavírus, nosso encontro foi todo virtual, o cafezinho e o bolo ficarão para quando a poeira sentar. Mesmo assim, ela nos proporciona uma conversa prazerosa.
Elza Bezerra: D. Ignez, conte um pouco para o leitor como foi estudar na Escola Doméstica, ser filha de um industrial importante, esposa de advogado e, nos anos 70, decidir fazer carreira independente na gastronomia.
D. Ignez: Sempre tive muita vontade de estudar na Escola Doméstica, e fui, enfrentei mesmo sem conhecer ninguém, chorava muito na Escola, mas não saia, demorei a me adaptar, mas hoje vejo que para minha profissão foi uma das melhores coisas que fiz.
Apesar de papai ser tido como rico, éramos uma família simples; mamãe colocava todo mundo para trabalhar e meu pai dizia: “coloque as meninas para trabalhar”. Basta dizer que com 15 anos pedi uma máquina de costura de aniversário a mamãe. Sempre fui incentivada a trabalhar e quis ter uma profissão, crescer com minhas próprias pernas.
Elza Bezerra: A mesa é um lugar de compartilhar e celebrar. A Senhora vem de família numerosa, de mesa cheia, alegre e farta. De que maneira esse ambiente influenciou o seu trabalho e como se sente trabalhando nos bastidores para proporcionar tanto prazer aos seus clientes.
D. Ignez: Realmente o momento da refeição era muito importante, a mesa cheia e farta, principalmente aos domingos, já que os casados iam todos em casa para almoçar. Esses momentos à mesa influenciaram muito no meu trabalho. Mamãe sempre me chamava para ajudar na cozinha e para ajudar a escolher o cardápio, na simplicidade e com comida sertaneja. Papai vinha de Campina Grande e trazia muitas coisas da fazenda, o nosso cardápio era muito simples, mas muito bem elaborado, e quando fui para a Escola comecei a melhorar o cardápio para uma coisa mais fina. Me sinto muito realizada, sempre procurei trabalhar em todas as festas, nos bastidores, sempre fui muito reservada, sempre estava presente, até o fim da festa, com muita responsabilidade.
Elza Bezerra: A Nick Buffet é referência na cidade e já atendeu a todos os tipos de festas e recepções. Conte um pouco dessa história e narre alguns casos pitorescos ou relevantes – não precisa citar nomes, se preferir.
D. Ignez: A Nick começou na Gonçalves Ledo, ao lado do Cinema Nordeste, meu sonho realmente era me estabelecer, montar um comércio. Lembro que lá era só um vão, e eu mesmo coloquei divisórias de fórmica estampada, levei todo o material da cozinha para lá, era tudo doméstico, liquidificador, fogão, batedeira. Na primeira semana queimei o liquidificador e batedeira, aí percebi que estava dando certo e comecei a investir nos equipamentos semi-industriais.
Ficava muito feliz nessa época, com o lanche dos clientes, do pessoal do banco Nordeste, os meninos que vinham do Salesiano para comer empadas. Quando a empada começava a cheirar todo mundo corria. Aí comecei a ver que estava ficando pequeno, foi quando me apareceu uma casa para alugar na esquina da Mossoró com a Prudente de Morais, e um tempo depois coloquei o meu primeiro Buffet.
Fiz muitos casamentos grandes e importante da sociedade, perco a conta, e na época tinha também a parte de flores, da decoração, teve o jantar (comida) do Papa. Um evento que lembro como desafiador foi o de um lançamento de um carro de uma fabricante de veículos, tivemos que preparar, durante 5 dias, numa cozinha totalmente improvisada (um galpão na base aérea), 300 refeições para servir empratadas e quentes.
Elza Bezerra: Com tantos anos de experiência profissional, a Senhora passou por várias fases da gastronomia: da comida simples, com uma pitada de regionalismo, até a mais sofisticada. O que mudou em todos esses anos?
D. Ignez: Acho que o que na época era o máximo hoje está superado, apareceram novos ingredientes, apesar de tudo, nosso filé é uma tradição. Antigamente fazíamos, além do filé, muito peru, porco, e hoje noto que as pessoas se alimentam em menor quantidade, principalmente as mulheres, e a gente tem que estar muito atenta aos ingredientes que não engordam, os “fits”.
Elza Bezerra: Atualmente, muitos chefs premiados têm insistido na utilização de produtos regionais, preservando as características dos ingredientes para dar mais sabor ao preparo dos alimentos. Nós temos uma culinária tradicionalmente fincada nos produtos sertanejos. É possível fazer uma comida sofisticada usando esses produtos?
D. Ignez: Sim, com imaginação e bom gosto podemos elaborar um bom cardápio com produtos regionais.
Elza Bezerra: A Senhora tem mãos de fadas também para decoração e foi florista durante um bom tempo. Além da comida saborosa, quais os outros ingredientes para fazer uma festa perfeita?
D. Ignez: Bom gosto, atenção aos detalhes. Tudo tem que ser muito bem pensado, observar o gosto e as possibilidades do cliente, utilizar a criatividade. Além da boa comida, ter cuidado com a decoração, desde o guardanapo até a toalha e o serviço.
Elza Bezerra: Por fim, qual ingrediente a Senhora considera indispensável para fornecer sabor e prazer aos apreciadores da arte gastronômica?
D. Ignez: Gosto de utilizar coentro, ervas e temperos variados (pimenta do reino, cominho, noz moscada), o creme de leite fresco, e acho que queijos maravilhosos, um queijo bom pode modificar totalmente o sabor de um creme e transformar um prato simples em algo sofisticado.
Autor(a): Eliana Lima