Cultura

“Só um tiquinho”, por Marcelo Alves Dias

27 DEZ 2020

Procurador da República que tem uma das mais completas bibliotecas do RN, com obras em várias línguas, o jovem Marcelo Alves Dias escreve mais um ótimo artigo para a Tribuna do Norte. Tão interessante nesses tempos de procura pelo que fazer para aliviar o peso dos momentos pandêmicos, reproduzimos suas tão bem traçadas linhas com suas dicas.

Íntegra do texto:

- Só um tiquinho

    Este Natal foi diferente. Tudo muito calmo. Visitamos os meus pais e os meus sogros, só para dar um alô e deixar as lembranças. De resto, ficamos em casa com o pequeno João. É o segundo Natal dele. De muitos, com as graças do Menino Jesus e do Papai Noel. 

    E acho que passarei as festividades de fim ano lendo, algo que tenho até feito bastante faz algum tempo. Um dos poucos efeitos colaterais positivos da pandemia. 

    Uma “literatura de Natal” cairia bem, não?

    Na temática, o clássico dos clássicos é, sem dúvida, o conto/novela “A Christmas Carol” (traduzido entre nós como “Um Conto de Natal” ou “Um Cântico de Natal”), de 1843, o mais famoso dos cinco “Christmas Books” (“Livros de Natal”) de Charles Dickens (1812-1870). O conjunto é completado por “The Chimes” (1844), “The Cricket on the Hearth” (1845), “The Battle of Life” (1846) e “The Haunted Man and the Ghost’s Bargain” (1848). A estória de Ebenezer Scrooge e dos três espíritos que o fazem refletir sobre a vida é, em grande medida, a responsável pelo Natal como hoje conhecemos, em família, com presentes e, sobretudo, com uma maior solidariedade para com o próximo.

    Muito conhecido também é “Hercule Poirot’s Christmas” (“O Natal de Poirot”), de 1938, da minha amiga Agatha Christie (1890-1976). Pelo menos para os muitíssimos fãs da Rainha do Crime. Somos convidados a desvendar, junto com o famoso detetive belga, um homicídio em uma típica mansão inglesa no campo, em meio a um reencontro natalino. O morto é justamente o anfitrião, o tirânico milionário Simeom Lee. Misturar crime com o Natal dá certo? Com a minha amiga Agatha dá, com certeza. 

    Já na Internet, eu achei “The Father Christmas Letters” (“Cartas do Papai Noel”, 1976), de J. R. R. Tolkien (1892-1973). Católico e filólogo, Tolkien tem o seu lugar garantido entre os grandes nomes da literatura, sobretudo por “The Hobbit” (1937) e a mui conhecida trilogia “The Lord of the Rings” (“O Senhor dos Anéis”, 1954-55). Ele, todos os anos, entre 1920 e 1943, fazia chegar à sua casa em Oxford uma carta do Papai Noel, “escrita e postada” diretamente do Polo Norte. A coletânea destes textos, escritas por um autor de infinita imaginação, compõe o livro. Vocês podem já suspeitar qual é o seu conteúdo.

    E já que tratei de três autores do Reino Unido, país de minha grande simpatia, até para manter uma certa simetria, vou sugerir também três autores brasileiros. Entre nós, eu encontrei – e li de uma tacada só – algumas obras-primas em forma de conto. 

    De Raul Pompeia (1863-1895), temos o belíssimo “Durante a noite: conto do Natal” (1883), no qual o pequeno Carlito, com sua mamãe acamada e todos em casa muitíssimo preocupados, recebe, na virada da noite, dos anjos do Natal, um inesperado presente. 

    De Arthur Azevedo (1855-1908), temos o “Conto de Natal” (1906). Inusitado e, digamos, “injusto”, ele conta a estória de uma caridade feita e erroneamente atribuída à Baronesa de Santa Bárbara. A vida, até no Natal, é danada para premiar quem não merece.

    E cheguei ao grande Machado de Assis (1839-1908). À sua “Missa do Galo” (1899). A conversação do estudante Nogueira, o narrador do conto, que contava então dezessete anos, com Dona Conceição, que contava trinta, e era a dona da casa e segunda esposa do escrivão Meneses. Muito é dito, muito mais é não entendido e algo só é depois imaginado. Obra-prima do nosso maior escritor. Crítica aos costumes e à hipocrisia. Fina ironia. No mais belo estilo machadiano. 

    Confesso que já andei xeretando todos esses textos. Mas caí pensativo sobre a “Missa do Galo”. Relendo e imaginando. E foi o que deixou as minhas festas, tão calmas, um tiquinho picantes. Só um tiquinho. 

Marcelo Alves Dias de Souza

Procurador Regional da República

Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

 

Autor(a): Eliana Lima



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